03 janeiro 2012

O Tempo e o Efeito Da Subjectividade


Tempo... O que é o tempo? Como se mede tal grandeza?  Esta enorme pergunta, talvez demasiado grande até, tem intrigado estudiosos, matemáticos, físicos, filósofos e curiosos ao longo da história da humanidade. Mas não só. Também o cinema se pode servir de tal teorética como base às suas próprias reflexões. Portanto, o que é o tempo num filme? Dificilmente chegar-se-á a um consenso se procurarmos a definição absoluta e definitiva de tempo porque ele é, para o ser humano, em senso comum, apenas um evento psicológico, apenas uma sensação derivada da transição de um movimento. O tempo sempre foi tratado como um conceito adquirido por vivência, indefinível em palavras. Apesar de estar vinculado a eventos externos ao indivíduo, sempre será definido de forma idiossincrática.

Já Platão havia afirmado que o tempo nasceu quando um ser divino colocou ordem e estruturou o caos primitivo. O tempo tem, portanto, de acordo com Platão, uma origem cosmológica.  Platão procurou estabelecer a distinção entre o "ser'' e o "não ser''. O mundo do "ser'' é fundamental e não está sujeito a mutações. Ele é, portanto, eternamente o mesmo. Este mundo, entretanto, é o mundo das ideias, apreensível apenas pela inteligência e pode ser entendido utilizando-se a razão. O mundo do "não ser'' faz parte as sensações, que são irracionais, porque dependem essencialmente de cada pessoa. Para Platão este mundo é irreal. O domínio do tempo estaria nesse segundo mundo, assim como tudo o que se observa no universo físico, tendo assim uma importância menor. Talvez possa ser dito que para Platão o tempo essencialmente não existe, uma vez que faz parte do mundo das sensações.

No ensaio "A Thousand Plateaus", Gilles Deleuze e Felix Guattari trazem à luz das suas reflexões duas correntes subjectivas do tempo concebidas na Grécia antiga. O Aeon e o Chronos. "Aeon: the indefinite time of the event, the floating line that knows only speeds and continually divides that which transpires into an already-there that is at the same time not-yet-here, a simultaneous too-late and too-early, a something that is both going to happen and has just happened. Chronos: The time of measure that situates things and persons, develops a form, and determines a subject.… In short, the difference is not at all between the ephemeral and the durable, nor even between the regular and the irregular, but between two modes of individuation, two modes of temporality."

O que se cria então quando, ao presenciarmos um filme, se interligam estes dois modos de temporalidade? Aquele que é o nosso tempo real com aquele que é o do filme, por definição fictício. Aprofundar este tema seria ir à procura do que foram os estudos de filósofos como Gombrich e Garroni sobre os modos de relacionamento do espectador com as imagens. A própria concepção de dois tempos que, num certo momento, interagem em si é, por si só, imensurável. Isto foi um dos pontos de origem para a criação de noções tão específicas como a do tempo mental e a do tempo interior do espectador. Talvez um dos primeiros passos a dar para realmente compreender esta questão seria deixar de associar o tempo a algo que flui e passar a considerá-lo como algo que, simplesmente, é. Um vasto caminho passível de ser aprofundado mas para o qual não tenho... tempo.


"If I would live in times of Mark Aurelius, I would perceive the time as he portrayed like the river, like the irresistible flow of all created things. But I live now, time for me is the room, where the mirrored ceiling is my future and the glass floor is my past and I am standing in the middle looking out of the window in now and try to see the sky, knowing that if I would want to reach it and jump, I would become the past."
Vicor Erice


Publicado por Rui Figueiredo

08 dezembro 2011

Atlas Mnemosine

Leone Niel


Bilderatlas Mnemosyne (Atlas de Imagens Mnemosine) era um projecto de Aby Warburg, historiador de arte e filósofo, que consistia num conjunto de 63 painéis (compostos entre 1924 e 1929), onde estavam “agrupadas” perto de mil imagens, desenhos, pinturas, páginas de livros, etc.

Warburg iniciou este projecto ambicioso, onde juntava estas “imagens”, de várias épocas e estilos, sem ir pela forma natural de fazer reflexões sobre a história, mas sim numa ideia de criar uma constelação em que procurava um sentido e estabelecia uma cadeia de transporte de imagens, de linhas de transmissão de características visuais através dos tempos.

Foge à ideia clássica de historicismo, de arquivo - um catálogo onde criamos uma totalidade, a maior possível, sobre um conjunto de dados - criando uma constelação de dados, imagens, sentidos, instaurando uma noção de pathos.

Teve um papel decisivo no tratamento e conexão com a “imagem de montagem” nas artes. Este conceito de montagem face à história é uma restituição que nos liga às imagens (contrapondo à insensibilidade e quietude do arquivo histórico). O que estabelece a ligação é da ordem da experimentação - tem uma relação com as imagens pela experiência, escolhendo os momentos, as imagens em relação com a sua experiência.

Vejo aqui toda a contemporaneidade da arte - o gesto do criador é o reconfigurar. Com o seu trabalho, Warburg descobre na história como memória o enigma do caos mimético de onde pode emergir o pensamento, o não esquecimento, a arte. Este e qualquer trabalho de rememoração terá que ser numa reconfiguração experimental, escolher um troço, fragmentos que criam um sentido, nunca fechado, mas que respeita o inacabado, o incompleto e que suscita novas interpretações. É através deste gesto da montagem que se possibilita ver o tempo a fazer-se - observar a história, desmontar e imaginar possibilidades do passado e do futuro. Reconfigurar o tempo, não histórico, mas possibilitante - fazer a conexão, não um mapa de conectividade visual e superficial, mas sim uma conexão com nós próprios, contra o esquecimento do ser.



07 novembro 2011

The Hobbit - Uma nova maneira de contar histórias?


"People who have seen "The Hobbit" in 48 frames per second often say that it is like the back of the cinema has had a hole cut out of it where the screen is and you are actually looking at the real world. Once you had stereo and that gives you that extra ability to control depth you can device ways in which it can become part of the story telling of the film" - Peter Jackson

Miguel Cravo 
A projecção esteoroscópica de filmes não é algo completamente novo na História do Cinema - existe, pelo menos, desde os anos 50. O que me chama, verdadeiramente, a atenção é a união de diversas e quase improváveis técnicas de captação e controlo da imagem, que pretendem provocar um efeito mais realista do que a própria realidade. Para além, da imagem estereoscópica, o filme está a ser filmado em digital 5K (um dos formatos digitais com mais definição e tamanho), e - como se não bastasse - a captação e reprodução do filme será a 48 fps, isto é, o dobro da velocidade padrão em todo o cinema ocidental contemporâneo. O realismo sempre foi uma questão muito discutida no cinema, principalmente, no cinema narrativo; mas sempre houve uma, quase imperativa, tendência do espectador de assumir e aceitar, independentemente da qualidade da imagem, um filme projectado numa tela como um modo de aceder a uma determinada realidade.
Então, o que será esta sensação de tela recortada que liga a sala de cinema, directamente, a um mundo real - como num aquário?

É muito interessante também pensar que a estas "novas" opções técnicas exigem também das produções, novas formas de trabalho e constituição de novas hierarquias nas equipas conceptuais e de rodagem. Por exemplo, surge na produção deste filme um novo técnico especializado, que tem um contacto directo com o trabalho da câmara: o estereógrafo - nesta produção existem, pelo menos, três. A estereóscopia poderá igualmente trazer algumas complicações, ou pelo menos algumas questões, na forma como são utilizadas algumas técnicas, nomeadamente de perspectiva - por exemplo, a forced perspective, uma técnica utilizada em todos os filmes do Senhor dos Anéis, que consiste em colocar um actor mais distante (em profundidade) do outro e jogar com a posição da câmara (monocular!), para que, no plano este se pareça, fisicamente, mais pequeno que a personagem ao seu "lado". A opção de estereoscopia exige também a duplicação do número de câmaras e respectivos acessórios - 48 Red Epic, ao todo - o que acabou por ser determinante na opção estética, financeira e logística de se filmar em digital - note-se que os três filmes da série "The Lord of the Ring" foram filmados, por completo, em película Kodak. Para Peter Jackson, um dos pontos mais cruciais da utilização destas técnicas foi o seu impacto na forma como se filma - tudo se alterou para que nada mudasse. Foram desenhados novos equipamentos, novas gruas, novos suportes, novos sistemas de steadycam... note-se a curiosidade: a única coisa que falta nos armazéns de maquinaria de um filme de Peter Jackson, são os tripés - o realizador sempre os rejeitou, desde da sua primeira obra "Bad Taste" (1987), e valoriza, por contrapartida, a movimentação livre e espontânea na horizontal e na vertical, permitindo que, apesar de toda a complexidade técnica, a relação da câmara com o operador seja quase antropomórfica.

Mas afinal, o que é tudo isto? Para que serve?
Serão as novas técnicas e tecnologias ainda capazes de acrescentar novidades significativas, de inovar e de alterar a maneira de nós, criadores, contarmos as nossas histórias?

06 novembro 2011

A transdisciplinaridade

Manuel Guerra 
Exemplos da utilização da “profundidade de campo” na Pintura, na Fotografia e no Cinema, em diferentes épocas, e que revelam, uma vez mais, a transdisciplinaridade entre vários campos artísticos. Não deixa de ser bastante interessante, nenhum dos seus autores ter procurado designações e estereótipos como “pintura experimental”, “fotografia experimental” ou “cinema experimental”, para empreender traços de profunda criatividade e experimentalismo.


[Diego Velazquez]


[Thomas Struth]


[Orson Welles]

O que é isto de "experimental"?

Miguel Cravo
Gostava de contribuir para esta nossa partilha de ideias, não com um pequeno estudo de conceitos técnicos e filosóficos, mas com uma tentativa de responder a uma simples e pragmática questão, com a qual me tenho debatido: afinal, o que é isto de cinema experimental? E faço-o, do ponto de vista de um mero curioso, de um espectador. Gostava de começar esta reflexão, após o visionamento destes dois exemplos:

Exemplo 1: Thinking Of, Miguel Cravo, 2010
Exemplo 2: Glitch Telemetry, Maria Niro, 2010


Depois deste visionamento, talvez consiga, através das seguintes questões, compreender melhor o que os diferencia: O que percebo deste filme? O que me chega e de que modo chega? E, talvez, o mais importante, o porquê de ele reagir comigo?

Falo do primeiro exemplo com um perfeito à vontade, uma vez, que sou o autor do mesmo. Um conjunto de imagens, sem ligação, sem narrativa, sem intenções; unidos por uma componente musical que determina o ritmo dos cortes e dá corpo à montagem, dando uma certa ideia de unidade conceptual. Descrevo-o como uma experiência, ou, experimentalista. Contudo, na prática, não passa de um teste de capacidade ao meu novo equipamento técnico; um teste de cores, definição, perspectivas e formas. É verdade, que uma qualquer sequência de imagens e sons, provoca sempre uma qualquer reacção a quem estiver assistindo. Na minha opinião, no entanto, este exemplo não tem intenção de ser cinema, nem experimental. Provoca uma opinião de aceitação ou de desaprovação, mas nada de íntimo nem de, profundamente, individual.

No segundo filme, sou mergulhado num confuso confronto de imagens e ligações, uma complexa desordem que me toca, e não sei bem explicar porquê. Poderia referir-me às ideias de juventude, de fascinação e de sonho, presentes num estilo de hipnotismo e surrealismo. Mas há algo mais. O que existe neste pequeno pedaço de cinema que me toca tão profundamente? Escrevo este texto, algumas horas após o ter visionado (propositadamente), e consigo identificar com precisão, o momento que mais me marcou: a imagem de umas mãos a desfiarem um novelo – aparentemente, sem fim – de cabelos. Encontrei uma espécie de punctum, utilizando a linguagem de Roland Barthes, na (des)estrutura desta obra, contudo, não sei explicar o que nela existe de tão especial e de tão íntimo, a ponto de se imortalizar na minha cabeça – note-se que apenas surgiu uma vez. Talvez seja uma espécie de sensação viva, indefinida, que me permite quase tactear e sentir cada áspero cabelo, que se separa, tão misteriosamente e se individualiza. O que me permite chegar a este tactear, a esta sensação tão material, tão bruta e tão concreta?

Será experimentalismo o mesmo que experimental? Responderei, sem pensar muito e num acto pouco reflectido e, possivelmente, errante, que o primeiro parece-me ser uma experiência de teste, e o segundo uma experiência sensível. Ambos experimentam, mas  aquilo que experimentam é, integralmente, diferente. Se estiver correcto, este pensamento irreflectido, permite-me concluir que (cinema) experimental não pode nascer de um conceito de experiência – isto é, lato sensu, de teste. Penso que “experimental” é algo próximo de “sensação” – experimentar novas sensações, e não apenas, experimentar novas técnicas. Poderei, assim, afirmar que um filme experimental, por oposição ao cinema narrativo, vive muito mais da capacidade de provocar sensações no espectador, do que das intenções do seu autor?

Por exemplo, o cinema de Tarkovsky, é altamente provocante e capaz de trazer ao de cima diversas sensações. Será, no entanto, este “sensível”, o mesmo que nos chega nas cinematografias experimentais como as de Godard, Greenaway ou até mesmo desta jovem autora Maria Niro? Muitos podem pegar este tema de diferentes maneiras; partilho convosco a minha. Não, para mim este sensível dos autores experimentais é bastante diferente do de Tarkovsky. Os filmes de Tarkovsky são, marcadamente, caracterizados pelo seu carácter metafísico, o retrato da vida através do sonho e das memórias, um cinema do tempo e do visual, de uma unidade provocada pelo simbolismo e pelo drama. Deste modo, o sensível chega-nos pela posição e relação do espectador com esse simbolismo, com essa segunda dimensão presente em cada plano e entre eles, que nos transporta, inevitavelmente, para uma viagem de busca de sensações interiores, que preencham o sentido que o autor nos quer fazer passar. Talvez esteja errado, mas não penso que seja isto o tal “experimental”. Tarkovsky tem uma ideia muito precisa dos sentimentos que quer provocar e a sua intelectualidade está na concretização dessas ideias através das imagens. Em cima, escrevi que cinema “experimental” era algo que nos levava a experimentar sensações – reconheço agora que não fui preciso. O que diferencia o cinema sensível de Tarkovsky do de Godard, é a forma. “Experimental” é, na verdade, experimentar novas sensações através da forma.

Mas então, o que torna “2 ou 3 choses que je sais d'elle” de Jean-Luc Godard, de 1967, uma obra, tendencialmente, mais experimentalista do que o Concerto para Violino e Orquestra nº1 de Nikolai Roslavets, de 1925? Provavelmente, esta é uma falsa questão e arrisco que, talvez, nada os diferencie, apesar de serem, objectivamente, diferentes no seu enquadramento técnico, artístico e histórico. Ambos usam a colagem de pedaços improváveis, heterogéneos, sem ligação – os planos e os sons em Godard e as notas e instrumentos em Roslavets – que geram no espectador uma sensação, através de um conjunto de fragmentos individualistas, numa provocante e irritante sequência, ordenada em desordem. As imagens e as notas perdem o seu valor habitual e tornam-se material pitoresco e bruto capaz de nos fazer desistir de compreender o seu conteúdo narrativo e simbólico, e efervescem sensações indefinidas e genuínas, únicas, puras e diferentes em cada indivíduo.

Será o realizador experimental, um metteur en scène de técnicas formais, que permitam o espectador entrar num qualquer tipo de relação inesperada com o material projectado e que provoca nele sensações/ memórias/ irritações/ gostos ou desagrados?
Em qualquer criação artística, existem duas experiências: a do criador e a do observador. Por outras palavras, um filme é construído por um autor e vivido por um espectador. Mas se a minha ideia anterior se verificar, será o realizador de um filme experimental o verdadeiro autor dessas relações sensíveis e, puramente, individuais do espectador que reage à obra per se? Outra questão: Será mesmo possível chamar de “experimental”, um filme com o qual não se cria qualquer tipo de relação directa ou indirecta, intelectual ou sensível – apesar das intenções experimentais e sensíveis do seu autor?

17 outubro 2011

2 ou 3 coisas

>>> O todo e as partes, por Amy Taubin (The Criterion Collection)
>>> Sujeito/objecto, por Hunter Vaughan (The Film Journal)
>>> 2 ou 3 Coisas sobre Ela em DVD (DVD Beaver)
>>> Cinema & utopia (2006), exposição no Centro Pompidou (+ uma visita).
>>> Jean-Luc Godard (biografia, filmes, etc.) no site do Centro Pompidou.

16 outubro 2011

Uma imagem, duas imagens

João Lopes
a. Confrontar imagens pode ser uma boa pedagogia – é mesmo um princípio de acção e reflexão da modernidade. Não para decretar a "vitória" de uma imagem e a "derrota" de outra. Antes para sentirmos como cada uma delas atrai ou rejeita outra.

b. Por exemplo, em cima, uma imagem da série Morangos com Açúcar. Em baixo: uma imagem do filme de João Canijo, Sangue do Meu Sangue. Ou como o naturalismo televisivo (luz, ruído, telejornal) é totalmente estranho ao realismo cinematográfico (cor, textura, pele) – figuras de cera e corpos vivos.

c. Dito de outro modo: um dos grandes desafios (estéticos e de produção) do cinema em Portugal passa pelo sistemático questionamento da formatação televisiva.

No intervalo das imagens (e dos sons)

João Lopes
Que acontece quando se liga uma imagem com outra imagem? Duas imagens... e também a "soma" dessas duas imagens, como se nascesse um terceiro termo. E um som com outro som? Talvez um novo som, feito da conjugação dos dois. Uma coisa é certa: a relação de sincrónica entre uma imagem e um som é uma convenção ou, se preferirem, um código.
Para Peter Greenaway, há muito que o sincronismo é um código que pode ser transfigurado ou pervertido. Mais precisamente: o cinema não tem de contar histórias em que os sons "confirmam" as imagens (mesmo se tal dispositivo deu origem a muitas e muitas maravilhas). Intervals (1973), uma das suas primeiras curtas-metragens, é a divertida ilustração desse processo de transformação: uma viagem sincopada por cenários de Veneza, contando a história da sua própria deambulação por uma cidade labiríntica, sem centro.

15 outubro 2011

Fragmento I: «A Modernidade não é [mesmo] linear.»


MONET, Claude. Gare Saint LazareParis1877.
Óleo sobre tela. Musée d'Orsay, Paris, France.

Manuel Guerra
Parece evidente a ideia de que a História (do Cinema) não pode ser vista de forma linear ou numa qualquer lógica de progresso, tanto no seu interior, como na sua transdisciplinaridade e relação com outras formas de criação.

Mas se a este respeito ainda restam dúvidas, recordemos um exemplo: em 1863, o autor d’As Flores do Mal (1857), Charles Baudelaire (1821-1867), escreve O pintor da vida moderna. Não se tratando da primeira aparição do termo “moderno”, o poeta, que encarnou o “espírito do tempo”, ousava utilizar de forma pioneira, e a respeito da arte e da vida, esta expressão. A obra, que surgiu publicada em três partes em Le Figaro, e que versa sobre algumas das figuras e transformações do século XIX, ficaria ainda e fortemente marcada pelo seu questionamento à missão contemporânea da arte e, essencialmente, pela sua génese “fragmentária” [pequenos retalhos/ apontamentos do dia-a-dia que associados formam uma unidade, “algo” caótica, e sem uma tentação centralizadora; afinal de contas: «A árvore fala mais da floresta do que a floresta fala de si (...)» (SILVA, Paulo Cunha, 2000)]. Tamanha insurreição, face à literatura instituída, influenciaria, no campo da Poesia, uma série de outros génios, nomeadamente, em Portugal, Cesário Verde (1855-1886).

Cem anos mais tarde (anos 50/60), e também influenciados por um contexto de grande crescimento e desenvolvimento económico, um conjunto de cineastas adquire consciência e “reivindica” um espaço autónomo e distinto para a Sétima Arte, agora encarada como um “objecto a perceber” (contrariando o tratamento clássico da “imagem-acção”). Num “novo regime cristalino” que, segundo Gilles Deleuze, pressupõe “situações ópticas e sonoras puras”, e que daria início àquilo que também designamos como a Modernidade (mas, desta vez, a da arte cinematográfica), uma das várias palavras de ordem seria, igualmente, a fragmentação – o que surge de uma certa ideia de experimentação. Não é por acaso, por exemplo, que as narrativas se tornam abertas e cheias de espaços que deixam de ser euclidianos e surgem filmes como O Último Ano em Marienbad (1961). Na concepção de Pasolini este conjunto de filmes tornava-se mais próximo do “dialecto” e de um novo dicionário de imagens – o da “poesia”.

Porém, se quisermos, a semelhança entre estes dois casos não se esgota numa ideia de fragmentação ou poesia. Ambos comungam ainda da exploração de um olhar atento e profundo (ponto de vista), num Mundo em constante devir e transformação (a este propósito, recordemos a figura do flâneur). Por outras palavras, repete-se a ideia clara de integração da relação do criador no Mundo, e do Mundo na vida do criador, o que recorda a frase de um conhecedor exímio de Baudelaire e autor, curiosamente, d’A Modernidade, Walter Benjamin (cit. por Grünnewald, 1969: 84): «O que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem se apresenta ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a êsse aparelho, êle representa para si o mundo que o rodeia.»