MONET, Claude. Gare Saint Lazare, Paris. 1877.
Óleo sobre tela. Musée d'Orsay, Paris, France.
Manuel Guerra
Parece evidente a ideia de que a História (do Cinema) não pode ser vista de forma linear ou numa qualquer lógica de progresso, tanto no seu interior, como na sua transdisciplinaridade e relação com outras formas de criação.
Mas se a este respeito ainda restam dúvidas, recordemos um exemplo: em 1863, o autor d’As Flores do Mal (1857), Charles Baudelaire (1821-1867), escreve O pintor da vida moderna. Não se tratando da primeira aparição do termo “moderno”, o poeta, que encarnou o “espírito do tempo”, ousava utilizar de forma pioneira, e a respeito da arte e da vida, esta expressão. A obra, que surgiu publicada em três partes em Le Figaro, e que versa sobre algumas das figuras e transformações do século XIX, ficaria ainda e fortemente marcada pelo seu questionamento à missão contemporânea da arte e, essencialmente, pela sua génese “fragmentária” [pequenos retalhos/ apontamentos do dia-a-dia que associados formam uma unidade, “algo” caótica, e sem uma tentação centralizadora; afinal de contas: «A árvore fala mais da floresta do que a floresta fala de si (...)» (SILVA, Paulo Cunha, 2000)]. Tamanha insurreição, face à literatura instituída, influenciaria, no campo da Poesia, uma série de outros génios, nomeadamente, em Portugal, Cesário Verde (1855-1886).
Cem anos mais tarde (anos 50/60), e também influenciados por um contexto de grande crescimento e desenvolvimento económico, um conjunto de cineastas adquire consciência e “reivindica” um espaço autónomo e distinto para a Sétima Arte, agora encarada como um “objecto a perceber” (contrariando o tratamento clássico da “imagem-acção”). Num “novo regime cristalino” que, segundo Gilles Deleuze, pressupõe “situações ópticas e sonoras puras”, e que daria início àquilo que também designamos como a Modernidade (mas, desta vez, a da arte cinematográfica), uma das várias palavras de ordem seria, igualmente, a fragmentação – o que surge de uma certa ideia de experimentação. Não é por acaso, por exemplo, que as narrativas se tornam abertas e cheias de espaços que deixam de ser euclidianos e surgem filmes como O Último Ano em Marienbad (1961). Na concepção de Pasolini este conjunto de filmes tornava-se mais próximo do “dialecto” e de um novo dicionário de imagens – o da “poesia”.
Porém, se quisermos, a semelhança entre estes dois casos não se esgota numa ideia de fragmentação ou poesia. Ambos comungam ainda da exploração de um olhar atento e profundo (ponto de vista), num Mundo em constante devir e transformação (a este propósito, recordemos a figura do flâneur). Por outras palavras, repete-se a ideia clara de integração da relação do criador no Mundo, e do Mundo na vida do criador, o que recorda a frase de um conhecedor exímio de Baudelaire e autor, curiosamente, d’A Modernidade, Walter Benjamin (cit. por Grünnewald, 1969: 84): «O que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem se apresenta ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a êsse aparelho, êle representa para si o mundo que o rodeia.»